Por que você não consegue largar o celular — e deixar de ser manipulado por ele
Algumas pessoas não se lembram, mas a gente já viveu sem celular antes. Nos dias de hoje, é quase impossível — e às vezes torturante — passar um dia sem ele. É como se faltasse um membro de nosso corpo.
Sair do escritório para almoçar e não levar o smartphone parece um ato de coragem. Poucas pessoas são tão importantes assim para não poderem ficar incomunicáveis, mas parece absurdo abrir mão da conexão com o resto do mundo por uma hora.
"E se acontecer alguma coisa?" Na verdade, o que queremos esconder com essa falsa preocupação é que não conseguimos suportar meros minutos de tédio sem distrair nossas mentes.
Não é só com você. Em menos de dez anos de uso massificado, já é possível perceber as mudanças que o smartphone promoveu no comportamento humano. Olhe em volta e veja que todos estão absorvidos pelos seus aparelhos, com a falsa sensação de estarem ocupados ou entretidos.
Uma pesquisa recente da Apple constatou que o usuário médio de iPhone desbloqueia seu aparelho 80 vezes por dia. Isso significa uma vez a cada doze minutos enquanto ele está acordado. As pessoas passam em média 145 minutos todos os dias no celular, ou seja, quase 2 horas e meia. Não dá para negar: estamos viciados em nossos aparelhos.
Passamos mais tempo no telefone que comendo, brincando com nossos filhos ou nos exercitando. Dedicamos mais à internet do que o tempo que nos permitimos dormir: o brasileiro passa nove horas e 14 minutos por dia conectado em todos os dispositivos. Desse tempo, três horas e 34 minutos são gastos só nas redes sociais. Imagina o que dava pra fazer com esse tempo livre.
É fácil dizer que o que nos leva a checar o Instagram tantas vezes ao dia tem a ver com a busca por conexão com nossos amigos. Mas a vontade irresistível de checar nossos perfis e a navegação por um feed que nunca acaba tem semelhança com decisões de design já consagradas na indústria de jogos caça-níqueis.
As redes sociais funcionam como uma grande Las Vegas, onde você tenta a sorte para conseguir uma dose de dopamina (um neurotransmissor relacionado ao humor e ao prazer). Às vezes a gente sai com um like, uma mensagem carinhosa de um conhecido, outras vezes sai sem nada. Essa inconsistência é um dos fatores que nos leva a sempre querer checar nossas redes.
Outra semelhança com o design de aparelhos caça-níqueis é a sensação cerebral de estar em uma “zona de conforto”. No livro “Addiction by Design”, ainda sem versão em português, a antropóloga cultural Natasha Schull investiga o comportamento solitário dos jogadores em cassinos. Durante 15 anos, ela ouviu jogadores e especialistas em design para entender o comportamento viciante dos jogos eletrônicos.
Natasha descobriu que vários jogadores relatavam um comportamento quando estavam jogando: a chamada “zona da máquina”. Enquanto eles estavam ali, desapareciam as preocupações diárias, as demandas sociais e até mesmo a consciência corporal. Se sentiam seguros e fechados em uma bolha. Jogar gerava ao mesmo tempo prazer e calma, excitação e segurança.
Qualquer semelhança com as redes sociais não é mera coincidência. Há algo similar no design dos celulares que apitam e enviam notificações para te convidar a desbloquear e engajar em uma sessão de internet. O gesto de "empurrar para baixo" para atualizar o feed é semelhante à sensação de puxar a manivela da máquina caça-níquel. É como se você dissesse: "vamos ver o que tem para mim aqui".
Os aplicativos e redes sociais foram desenvolvidos para prender sua atenção. E criar essa zona de segurança. A sensação que temos é que só precisamos de um tempinho quietos com nossos telefones para tudo acalmar e entrar nos eixos. A vida hiperconectada gera uma ansiedade tamanha que o celular é o remédio e ao mesmo tempo o que causa a doença.
“Sinto uma tremenda culpa”, disse recentemente o ex vice-presidente de User Growth (algo como crescimento de usuários) do Facebook Chamath Palihapitiya, em uma palestra em Stanford. “O loop de feedback rápido baseado em dopamina que nós criamos está destruindo o modo como a sociedade funciona”, disse ele.
Procuramos pelos nossos aparelhos a qualquer sinal de descanso do cérebro na vida real. Os poucos minutos em que passamos em um elevador ou enquanto fazemos as necessidades no banheiro, uma reunião que fica tediosa momentaneamente — tudo é gatilho para desbloquear.
O repórter Kevin Roose do jornal The New York Times recentemente escrevendo sobre seu vício em smartphone contou que ao tentar restringir o uso de seu aparelho, percebeu que tinha o gatilho de checar o e-mail toda vez que pagava algo em alguma loja. Entre digitar a senha e esperar a mensagem de “aprovado”, ele pegava o celular.
“É uma sensação enervante estar sozinho com seus pensamentos no ano de 2019”, resumiu o repórter depois de uma tentativa de restringir o uso do aparelho. O detox do repórter incluiu guardar o celular em um cofre e jamais dormir no mesmo ambiente que o smartphone. Um estudo recente diz que só de deixar o celular fora do quarto já aumenta a felicidade dos indivíduos.
Ainda existem muitos estudos a serem feitos para entendermos o real impacto do vício em internet na capacidade humana. Efeitos cerebrais e emocionais. A perda da calma e da contemplação. Da reflexão e da privacidade. Da solidão e da habilidade de ficarmos sentados em uma cadeira por 15 minutos sem estímulo externo. O narcisismo em massa. Tudo é moldado pela internet — e passará a ser cada vez mais.
Não é pra demonizar a internet, veja bem
Parafraseando Sophia Loren, que um dia disse: "tudo o que você vê, eu devo ao spaghetti", posso dizer que eu devo tudo o que sou à internet. Foi ela que me apresentou ao mundo. Que me trouxe mais conhecimento que os 24 volumes da enciclopédia Barsa que tínhamos em casa. Ela é capaz de encontrar um carro para me buscar na noite escura e um motoboy para ir ao mercado comprar um pedido excêntrico. Foi ela que me arranjou mais encontros amorosos que eu seria capaz de conseguir sozinha.
Tudo passa pelo meu celular: meus pensamentos bobos no bloco de notas, todas as cenas marcantes que vivi nos últimos anos e praticamente toda a minha relação com meus familiares.
A internet mudou toda a expressão humana. Publicar fotos bonitas funciona como um espelho de auto-afirmação para muitas pessoas e é através das redes sociais que elas se expressam e cultivam sua imagem pessoal.
Além disso, é lá que as pessoas expressam suas opiniões. Quanto mais passa o tempo, mais as redes sociais se tornam a grande praça pública da sociedade. Onde as pessoas com interesses comuns se organizam em comunidades. Uma espécie de Ágora Romana em escala global.
Toda a cultura atual passa pela internet e vai continuar cada vez mais. Tudo o que tem valor no mundo real vai estar na internet uma hora ou outra. E o que não estiver, simplesmente não terá relevância ou, pior ainda, será perdido.
Seria fácil dizer: larga o celular. Mas nós simplesmente não conseguimos. E não podemos.
A tecnologia ultrapassou a vulnerabilidade humana
Nós perdemos o controle da nossa relação com a tecnologia porque ela se tornou melhor em nos controlar. Nossa atenção virou um produto, assim como os detalhes da nossa vida pessoal. É a chamada “economia da atenção’, a linguagem nativa da internet.
Os celulares são feitos para viciar porque quanto mais estamos conectados, mais estamos alimentando o banco de dados das empresas de tecnologia para que elas nos entreguem o que achamos que precisamos: produtos. É assim que as redes sociais ganham dinheiro, se é que você não sabe.
Os anúncios estão cada vez mais específicos e isso mudou para sempre a publicidade. As marcas podem selecionar exatamente o perfil para quem querem anunciar: "homens de 25 a 34 anos, recém-separados, mas que querem voltar a ter um relacionamento". Tá lá um anúncio de colchão de casal no feed dele.
Os anunciantes nos encontram mesmo quando nem formamos opinião sobre comprar um produto. Mesmo quando comentamos em voz alta sobre algo e logo depois vemos um anúncio sobre aquele produto em nossas redes sociais.
A pergunta: “o Facebook está ouvindo minhas conversas?” gera 33.8 milhões de resultados no Google. A empresa nega que esteja, entretanto. Mark Zuckerberg respondeu quando esteve em audiência no Senado americano que o Facebook não usa o acesso ao microfone para fins de anúncios.
Possivelmente nosso celular nem precisaria ouvir nossas conversas, pois deixamos muitos rastros em nossa navegação. Todas as nossas conversas pelo chat são "ouvidas". E nossos cliques, nossas buscas. As fotos do nosso celular que subimos na "nuvem" são categorizadas.
A inteligência artificial evoluiu tanto que ela pode prever que você é gay analisando apenas alguns likes que você deu ou se um funcionário está prestes a se demitir ou morrer prematuramente.
"Imagine um mundo em que os padres ganham dinheiro vendendo o acesso às confissões para outra pessoa, exceto que, neste caso, o Facebook ouve as confissões de dois bilhões de pessoas e tem um supercomputador calculando e prevendo confissões que você vai fazer antes que você saiba que você vai fazê-las", resumiu o ex-filósofo de produto do Google Tristan Harris em uma audiência no Senado, em junho de 2019.
Nesse novo mundo, nossos mais secretos desejos e emoções são categorizados em algum datacenter no deserto americano. E se toda nossa vulnerabilidade fosse usada apenas para prender a nossa atenção e nos vender coisas, já seria eticamente questionável o suficiente. Mas não.
O objetivo das redes sociais é te deixar puto
Segundo a socióloga da tecnologia Zeynep Tufekci, a organização do feed super personalizada define nosso acesso a informações políticas e sociais e pode resultar na manipulação de nossas mentes e opiniões. Governos e instituições poderiam comprar/determinar a divulgação de certas mensagens ou barrar conteúdos que pudessem prejudicá-los. "Estamos criando uma distopia apenas para fazer as pessoas clicarem em anúncios", afirma a professora nessa palestra.
Diversas pesquisas apontam que a divisão que grande parte das sociedades modernas vivem é causada pela bolha criada pelas redes sociais. Só vemos o que concordamos e estamos cada vez mais intolerantes com quem pensa diferente de nós.
Alguns governos e candidatos sabem se beneficiar dessa divisão da sociedade e propagam mensagens de ódio e intolerância para ter mais amplidão em seus discursos. Isso porque mensagens que revoltam ganham maior repercussão nas redes sociais.
Em um estudo científico recente, constatou-se que para cada palavra de indignação que se adicionava a um tweet, crescia 17% a taxa de retweets. Ou seja, quanto mais emoções e polêmicas um conteúdo tem, mais chances ele tem de ser compartilhado. Quanto mais você se revolta, mais é levado a engajar, ou seja, curtir e compartilhar o que está vendo.
A polarização da sociedade passa pelo modelo de negócio das redes sociais. Por isso, os algoritmos priorizam conteúdos cada vez mais extremos. "Se você imaginar um espectro no YouTube. Do meu lado esquerdo, há a seção calma do Walter Cronkite [jornalista americano que se posicionou contra a Guerra do Vietnã]. Do meu lado direito há a loucura: OVNIs, teorias da conspiração, o que for. […] se eu sou o YouTube e quero que você assista mais vídeos, que direção eu vou enviar para você? Eu nunca vou mandar você para a seção calma. Eu sempre vou mandar você para a "cidade maluca". Então, agora você imagina dois bilhões de pessoas, [sendo manipuladas] como uma colônia de formigas indo para conteúdos ultrajantes. Isso está inclinando o campo para as coisas loucas", afirmou Harris na mesma audiência no Senado Americano.
Tristan Harris é uma das vozes mais importantes no momento pedindo para uma regulação das empresas de tecnologia e um dos criadores da organização Center for Humane Technology (algo como "Centro para a Tecnologia Humana").
“O poder de captação da atenção humana e monetização dos nossos pensamentos e emoções está levando a efeitos colaterais danosos como: baixa capacidade de atenção, raiva se sobrepondo ao diálogo, crianças viciadas, democracias polarizadas e tornando a vida uma competição por curtidas e compartilhamentos”, escreve a Center for Humane Technology, em seu site.
A organização pressiona para que as empresas assumam o caráter viciante dos apps e aparelhos e façam mudanças em seu design para que as pessoas possam mudar a relação com os smartphones. Ela pede que as grandes empresas de tecnologia assinem uma espécie de “Juramento de Hipócrates” — fazendo referência ao juramento de honestidade dos médicos — mas agora comprometendo-se a não expor as vulnerabilidades psicológicas das pessoas com objetivo de lucro.
Além disso, a organização pede a regulação do uso dos dados pessoais para nos proteger de um futuro assustador onde algoritmos podem decidir como nos manipulam e se nos dão acesso a informações e até a um julgamento justo.
Não se trata apenas do uso dos nossos dados como telefone e endereço, mas de toda nossa vulnerabilidade humana, nossa capacidade de errar e termos um julgamento justo por isso. Os critérios de uso de nossos dados pela inteligência artificial deveriam ser absolutamente transparentes e éticos.
Não é o que acontece quando somos levados a clicar que lemos todos os "termos e condições" em letras miúdas.
Nos divertindo até morrer
É fácil pensar no livro 1984, de George Orwell, quando falamos de uma sociedade vigiada. É assustador pensar em um estado totalitário que vigia seus cidadãos e quer controlar seus comportamentos, como no livro.
Não que isso esteja fora de perigo, mas um professor da Universidade de Nova York (NYU) chamado Neil Postman arriscou prever que o futuro seria distópico de outra forma: parecido com o previsto no livro Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.
No livro "Amusing Ourselves to Death" (algo como "Nos divertindo até morrer"), publicado em 1985, Postman previu muito do que se tornaria a cultura de internet. "O que Orwell temia eram aqueles que baniriam livros. O que Huxley temia era que não haveria razão para proibir um livro, pois não haveria ninguém que quisesse ler um", disse ele.
Décadas antes da chegada da internet ao público, Postman analisou como a televisão era capaz de transformar tudo o que tocava — incluindo a política, religião e as notícias em geral — em entretenimento.
Nos feeds das redes sociais, pessoas se misturam a produtos em uma galeria sem fim. Como a televisão, o melhor conteúdo de redes sociais precisa entreter. Mas elas vão além: tudo o que é compartilhado precisa se comunicar com uma "marca pessoal". Cada pessoa tem seu próprio meio de comunicação e tudo o que passa em seu feed se comunica com sua verdade própria.
As notícias se moldam à sua visão de mundo, e não o contrário. O conhecimento não vem para modificar o que você pensa, mas para servir à construção da sua imagem pessoal. Cada pessoa aprendeu com a televisão como fazer propaganda, e agora, faz propaganda de si própria.
Dá até para entender o avanço das fake news nesse cenário — o conteúdo se molda ao que eu quero acreditar.
Só que enquanto estamos todos imersos em nossos telefones e pensando em moldar nossa imagem pessoal para que os outros gostem da gente, estamos entregando tudo o que somos para alguém que nem sabemos direito o que pode fazer com isso.
"Se movimente rápido e quebre as coisas"
"Move fast and break things" foi um dos primeiros lemas de Mark Zuckerberg e do Facebook. Significava que o mundo conectado pela internet seria implacável em suas mudanças. "Se você não está quebrando algo, não está se movimentando rápido o suficiente", disse Zuckerberg certa vez.
E assim foi. Mercados inteiros foram extintos e outros passaram a existir rapidamente. O capitalismo tardio modificou a ideia de venda de produto e passou a vender a conexão entre as pessoas com interesses complementares.
Nada mais foi o mesmo depois da internet. Mas essa era acabou.
Está na hora de tomar cuidado com o que se vai quebrar. As tecnologias do futuro como manipulação genética, drones, reconhecimento facial, realidade virtual e realidade aumentada vão impactar cada vez mais nossas vidas e nossa privacidade.
A China já usa reconhecimento facial em locais públicos para monitorar minorias. No final de junho de 2019, o Pentágono divulgou uma ferramenta a laser capaz de identificar pessoas a 200 metros de distância apenas pelo batimento cardíaco. Isso combinado com todos os nossos dados pessoais, todas as nossas vontades e desejos, dá em quê?
É difícil falar sobre esse assunto sem parecer um maluco de teoria da conspiração, então a maior parte das pessoas prefere deixar pra lá e não pensar sobre.
Como disse um dos fundadores do site de compartilhamento de arquivos Pirate Bay, Peter Sunde, "parem de tratar a internet como algo diferente e comecem a focar no que vocês querem que a sociedade seja”.
Só nos resta esperar que esse novo mundo seja regulamentado a tempo para proteger nossa vulnerabilidade e nossas informações mais íntimas. E tentar desgrudar dos nossos celulares de vez em quando.